Alimento: fonte de vida e de conscientização
Imagine o homem primitivo em sua caverna, solitário e faminto. Sua capacidade de compreensão do mundo é limitada às suas necessidades mais básicas. A mais imediata é a alimentação, sem saber de onde virá a próxima refeição ele se defronta todos os dias em uma luta infinda pela sobrevivência. O dia 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação Saudável, deve ser um momento de reflexão quanto ao modo como nos relacionamos com a comida que ingerimos. Precisamos deixar de lado o viver para comer, e incorporar o comer para viver como lema.
Esse viver perpassa pelo inevitável dilema: até 2050, serão mais 2 bilhões além dos já 7 bilhões de indivíduos dividindo este mesmo planeta! Não será tarefa fácil. Daqui para frente, uma nova consciência deve ser apreendida sob o risco da extinção da espécie humana sobre a Terra. Toda escolha dos alimentos a consumir podem resultar em conseqüências radicalmente decisivas. A se manter a atual tendência em basearmos nossa dieta em carne e laticínios em detrimento a cereais integrais, frutas e legumes, os recursos energéticos podem ser insuficientes para alimentar todos esses bilhões de pessoas.
Há pouco mais de um século a fome era companheira constante de mais de 50% da população mundial pois produzia-se bem menos do que era necessário. Hoje, a fome ainda existe, mas não se trata mais de escassez de alimentos, mas de miséria causada pela má distribuição de renda. A comida existe e é diariamente desperdiçada às toneladas em todas as partes, seja em países desenvolvidos, seja nos menos providos de recursos.
O mundo globalizado dissemina os produtos por todos os países. O mercado japonês se abastece de carne de frango do Brasil, e este por sua vez tem em todos os grandes centros, vinhos, queijos, embutidos, geléias etc da Europa, Ásia, Oceania, África e Américas. A comida importada que chega às mesas de todos os que podem compra-la não somente custa mais em dinheiro, mas imensamente ao meio ambiente. Se cada cidadão estadunidense realizasse apenas uma refeição por semana exclusivamente com produtos obtidos em sua região, o país economizaria 1,1 bilhão de barris de petróleo toda semana*, relativo ao transporte dos alimentos. Só aí já seria um enorme ganho, sem mencionar a quantidade de CO2 que deixaria de ser descartada na atmosfera.
Desde que o homem fundou suas primeiras aldeias, o tipo de alimentação foi o pilar a definir todas as culturas. O arroz na Ásia, o trigo na Europa e milho na América (só no Brasil a base da alimentação indígena era a mandioca). As grandes navegações do século XV e XVI iniciaram o processo de globalização. Só para se ter idéia: o molho de tomate das italianíssimas massas, por exemplo, é feito com o fruto de uma planta nativa da América Central que começou a ser cultivada pela Civilização Inca. A manga e a berinjela vieram da Índia. O pêssego da China. A laranja, a banana e a alface também são asiáticas. O brócolis é europeu, assim como o repolho. A batata é nativa do Peru e a cenoura, do Afeganistão. Já a castanha do Pará, o açaí, o caju, a já citada mandioca e a goiaba são genuinamente brasileiros.
Desde aquele longínquo passado primitivo nas cavernas quando o alimento vinha exclusivamente da caça até a indústria agrícola de hoje, passaram-se pouco mais de 200 mil anos. E, nos últimos 100 anos, a espécie humana nunca teve tanta comida à disposição. O escritor italiano, fundador da Universidade de Ciências Gastronômicas de Pollenzo, Carlo Petrini, há várias décadas debruça-se sobre os encargos dessa produção desenfreada e desmedida. Não pesquisando apenas em termos de desperdício, mas em termos de saúde pública – a obesidade é uma das maiores preocupações da medicina atual – mas tendo em vista os próximos 100 anos.
Petrini é o precursor do movimento Slow Food – em contraponto óbvio com o Fast Food – onde a atividade principal são os encontros Terra Madre, ou Mãe Terra, de reúne milhares de produtores de alimentos de todo mundo para discutir os problemas e encontrar as soluções possíveis. “Nas últimas décadas temos assistido a um empobrecimento gradual dos sentidos – a nossa capacidade de sentir, saborear e cheirar”, alerta. Segundo ele o aumento da velocidade de nossas vidas nos priva da capacidade de experimentar a verdadeira diversidade e autenticidade no mundo ao nosso redor. A humanidade perdeu o contato com a terra, com o tempo, as tradições, conhecimento, cultura e gastronomia. Os momentos de encontro com raízes nos antigos rituais da vida diária e do ciclo das estações do ano não fazem mais parte da nossa experiência. O sabor uniforme de alimentos industriais, que são as mesmas em todo o mundo, tem empobrecido a nossa capacidade de reconhecer alimentos.
“Se você está preocupado com o destino do planeta, a definição de boa comida vai além de considerações como gourmet; deve ser eco-gourmet, ou seja, temos de estar conscientes do impacto potencial de nossas escolhas”, enfatiza. Para tanto, o pesquisador convida todos a se tornarem eco-gourmets, cuja a qualidade é definida por três adjetivos: bom, limpo e justo.
Por bom, entenda-se ir além das qualidades evidentes, mas que derivam do domínio complexo de sentimentos, memórias e senso de identidade que surgem de nossas associações emocionais com comida. Por limpos são aqueles que não estressam a terra, que são produzidos com respeito ao meio ambiente natural. E justo significa que está de acordo com os conceitos de justiça social no que diz respeito à sua produção e comercialização.
A rede Terra Madre reúne agricultores e pescadores, artesãos e produtores, chefs e acadêmicos. Esta é a face positiva da globalização. “O grupo dá voz aos que não aprovam os modelos desumanos de produção e de fixação dos valores de mercado para o mundo dos vivos. É precisamente a partir do Sul global – de pessoas em risco diário de ser esmagado por uma avassaladora dinâmica de mercado – que o grito de solidariedade surge”, exulta o pesquisador.
*Dados retirados do livro O mundo é o que você come – uma família prova que você pode comer cuidando da sua saúde e da saúde do planeta, de Bárbara Kinsolver
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